sábado, 18 de julho de 2015

Yane é tudo


por Lucas Bessel, de Toronto



Medalhista de bronze na Olimpíada de Londres em 2012, Yane justificou o favoritismo em Toronto. Logo na primeira prova, de esgrima, ficou em primeiro lugar com 18 vitórias e apenas três derrotas, somando 277 pontos. Na sequência, ainda foi a primeira colocada com sobras na natação, com o tempo de 2min12s18 nos 200 m livre - mais 304 pontos nesta prova.s
A brasileira seguiu em grane forma e conquistou a rodada bônus da esgrima, com 279 pontos, e partiu para o hipismo e prova de tiros com boa vantagem. Com os cavalos, contudo, não foi tão bem: terminou apenas na décima colocação, com 286 pontos, e viu as rivais encostarem.

Ao fim, no combinado de tiro e corrida, Yane largou com 36s de vantagens que foram decisivos para o resultado final. A brasileira se complicou na etapa e viu a mexicana quase ultrapassá-la na reta final - foi campeã com 1 segundo de vantagem para a mexicana Tamara Vega. Compatriota de Vega, Mayan Oliver ficou com o bronze, com 1407 pontos.

Conheça a história de Yane Marques, que neste sábado (18) ganhou a medalha de ouro pan-americana no pentatlo moderno – esporte que reúne corrida, natação, esgrima, equitação e tiro - e entenda por que ela é uma joia que deveria ser mais valorizada no Brasil. Além da conquista em Toronto, Yane foi bronze na Olimpíada de Londres-2012 (uma medalha que surpreendeu todo o País) e é uma das melhores esportistas dessa modalidade no mundo. Ela é real esperança de ouro em 2016, no Rio de Janeiro.
POLI-YANE

Após quase dez horas de competição, Yane Marques está esgotada. A dor, companheira constante de todos os atletas profissionais, não incomoda tanto. A mente, por outro lado, implora para que ela solte o fio de concentração que ainda resta para, finalmente, poder descansar. A sádica ironia é que é justamente agora, quando a competição se aproxima do fim, que a brasileira precisará de foco, físico e preparo psicológico perfeitos. Atirar, correr um quilômetro, atirar, correr um quilômetro, atirar, correr um quilômetro. Yane detesta correr, mas é muito boa na pistola. Enquanto mira com precisão militar, adversárias se aproximam, esbaforidas, fazendo barulho. Trata-se de um duelo direto. Quem cruzar a linha de chegada primeiro vence.
“A autoconfiança é um fator de supremacia”, diz Yane, de longe a melhor brasileira no pentatlo moderno. “Se você olha as mulheres do pentatlo, elas parecem fisicamente normais, mas têm um psicológico extremamente forte”, afirma. Normal é uma palavra que dificilmente definiria alguém que, em um único dia, joga 35 vezes na esgrima, nada 200 metros, salta de cavalo sobre 12 obstáculos, corre 3 quilômetros e acerta um total de 15 tiros em três alvos distintos. Menos usual ainda é que o Brasil, sem qualquer tradição no esporte, seja o país de uma das melhores pentatletas do mundo, frequentadora assídua do top 10 do ranking da União Internacional de Pentatlo Moderno (UIPM).
De qualquer ângulo que se olhe, esse esporte parece massacrante. Muitas vezes, também mostra uma face terrivelmente injusta, por deixar aos caprichos do acaso algo tão importante quanto a escolha do cavalo com que o atleta vai competir. “No pentatlo moderno, os cavalos são selecionados pela organização e sorteados entre os competidores”, explica Alexandre França, técnico de Yane. Cada animal cumpre o percurso de 12 saltos com dois atletas diferentes. Se uma lesão na pata ocorrida na primeira parte passa despercebida, o prejuízo para o esportista seguinte é quase irreparável. “Esse imponderável da equitação é crucial”, resume Yane. “Enquanto alguns atletas fazem 1.200 pontos (máximo possível), outros de nível similar fazem 700.”



          Engana-se, entretanto, quem pensa que só das fortunas do destino vêm a trajetória e os resultados impressionantes dessa simpática loirinha de 31 anos. Yane nasceu em Afogados da Ingazeira, município de 35 mil habitantes na caatinga pernambucana. Filha de mãe funcionária pública e de pai empregado na Companhia de Eletricidade de Pernambuco, é a caçula em uma escadinha que tem mais duas irmãs e um irmão. Única esportista da família, mostrou desde cedo vocação para travessuras. “Em Afogados, onde tinha condição de criar filho na rua, Yane subia em árvore, brincava na calçada, jogava peão e soltava pipa”, lembra a mãe, dona Gorete. Na escola? Melhor deixa pra lá. “Às vezes, não sei o que dava, ela não queria entrar na sala de aula de jeito nenhum”, entrega a mãe. “Deu um pouco de trabalho no colégio, mas nunca foi reprovada”. A vida pacata do interior durou até 1995, quando a família se mudou para Recife para que os filhos pudessem frequentar a faculdade. Um ano mais tarde, Yane, então com 12 anos, se encontrou nas piscinas do Clube Náutico, de onde migrou para o tradicional Nikita Natação. Ali, seu talento natural na água não passou despercebido. Ali, sorte e trabalho começaram a andar juntos.

                       “Claro que a natação é a prova de que eu mais gosto”, defende a brasileira. “Eu vim da piscina, e só depois conheci o biatlo e o pentatlo”. A atleta é quase uma descoberta forçada. A Confederação Brasileira de Pentatlo Moderno só nasceu porque a lei Agnelo/Piva, que foi sancionada em 2001 e destina parte da arrecadação das loterias federais ao Comitê Olímpico Brasileiro, exigia que uma porcentagem da verba fosse repassada ao desconhecido esporte olímpico. Não fosse isso, Yane provavelmente seria mais um dos talentos perdidos do Brasil, sufocados pela falta de apoio e de recursos. “Ela é contemporânea da nadadora Joanna Maranhão, mas em determinado momento não teve mais condições financeiras de evoluir nas piscinas”, recorda Helio Meirelles, presidente da confederação. Em 2003, já recrutada pelos olheiros do pentatlo e contando com a mínima estrutura necessária, a pernambucana começou a treinar sério. O primeiro resultado expressivo não demorou: campeã sul-americana em 2004. Desde então, Yane não parou mais de evoluir e não passou um dia sequer sem sofrer as agruras daquele que é considerado o mais completo dos esportes.
Às seis da manhã, o despertador de Yane toca. Ela pode estar em Recife, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre ou em alguma cidade italiana. O treinamento é diário e sagrado, quase como uma missa celebrada em nome da superação. “A ordem varia segundo o dia, mas nunca faço menos do que três modalidades”, explica. “Acordo, corro, vou nadar, almoço, durmo um pouco, pratico esgrima ou faço musculação, vou ao fisioterapeuta e ao psicólogo”, tenta resumir a atleta. Se não treina tiro durante o dia, Yane pratica de noite, em casa, para melhorar a mira e fortalecer os músculos do braço. “Acertar cinco tiros em nove segundos é uma marca excelente, mas, em média, a gente leva 12 segundos”, explica.

                    A rotina digna de quartel, a arma – que dispara um feixe de laser contra o alvo -, as habilidades de esgrimista e a destreza no cavalo não são as únicas ligações da atleta com os militares. Longe disso. Em parte, o Exército do Brasil é responsável pelo sucesso da pernambucana no pentatlo moderno. Yane Marques ostenta a patente de terceiro sargento e competiu nos Jogos Mundiais Militares de 2011, realizados no Rio de Janeiro. Como qualquer outro membro das Forças Armadas, precisa se apresentar periodicamente ao seu general, participar de cerimônias oficiais e seguir o código disciplinar da corporação. “Ela tem farda completa, coturno, boina, e aprendeu a atirar de fuzil”, diz a mãe, dona Gorete.
Para representar o Exército no esporte, Yane recebe o soldo regular de um terceiro sargento, cerca de R$ 4.000 por mês. Grana pouca para um atleta de elite, mas grana salvadora para alguém que, em 2011, não contavam com nenhum patrocínio privado em dinheiro. “Às vezes, paro para pensar como seria se eu não estivesse no Exército”, reflete a brasileira. “Não teria parado de treinar, mas também não conseguiria passar uma temporada inteira no top 10 do ranking mundial”. Yane entrou para as Forças Armadas em 2009. Seu contrato como “atleta-soldado”, que é renovado anualmente, pode se estender até 2016.
Por dois anos, o soldo foi sua única fonte de renda, até a instituição do programa Bolsa Atleta e, depois, do Bolsa Pódio, do governo federal, para atletas que frequentam o topo dos rankings mundiais em seus esportes. Hoje, ela tem o suficiente para se dedicar integralmente ao esporte.

Yane não esconde que, das modalidades que compõem o pentatlo, a corrida é a que impõe maiores dificuldades. Tanto que, nos períodos de treinamento, ela tem pesadelos com os puxados percursos que precisa cumprir. “Aquele treino de corrida pura, em que você vomita de exaustão no final, acontece uma vez por semana, mas eu passo dias, durmo e acordo pensando nesse treino”, recorda. Foi nos percursos a pé que ela teve maiores dificuldades em evoluir no início da carreira. Em compensação, mostrou competência extrema ao chegar à esgrima, a ponto de ganhar elogios de um dos grandes nomes do esporte no mundo, o francês Sebastien dos Santos, treinador da equipe americana de pentatlo moderno. “Yane é muito focada e aprende muito rápido”, disse ele durante os Jogos Mundiais Militares de 2011. “Todos ficaram impressionados, não só eu”. Os elogios também vêm dos pares brasileiros, como a amiga e rival Priscila Oliveira: “A Yane mostra muita regularidade nas cinco modalidades”, afirma. “Ela é uma atleta completa”.

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